domingo, 14 de novembro de 2010

O FAMOSO EPISÓDIO DO "CARNAVAL SANGRENTO"

    Este imponente prédio (que por um milagre ainda não foi demolido), conhecido como "Clube Comercial", é resultado de um projeto da nata cruz-altense no final do século XIX, pois a cidade, naquela época, não possuía clube de recreação. Para se associar ao clube, os candidatos passavam por uma bateria de avaliações parecidas com as da Maçonaria - pessoas escolhidas à dedo e votação com bolinhas pretas. Em dias festivos, estacionavam fronte ao prédio belíssimas carruagens e tílburis, e os menos privilegiados economicamente, paravam nas calçadas para observar aquela gente distinta, elegante e bem trajada que penetrava o clube.
    Pois bem. Dizem os livros de história que, certa vez, no dia 4 de fevereiro de 1913, aconteceu um dos eventos mais infelizes (dos vários) que aconteceram em festividades na Rua do Comércio. Os fatos se desencadearam da seguinte maneira: No dia 16 de janeiro de 1913, a cúpula dos membros do clube se reuniu para votar a "iniciação" do Tenente Francisco Manoel da Silva - aprovado por unanimidade. No dia seguinte, entrou em votação o nome do Tenente Guilherme Lavor, que foi rejeitado pela maioria dos votos.
    A causa da recusa não foi declarada.
    Por esse motivo, a Diretoria se reuniu novamente, pois recebeu ofício de vários sócios que resolveram se retirar do clube, em forma de protesto. Outros se econeraram do clube logo depois. A Diretoria tentou, em várias reuniões seguintes, restabelecer um clima amigável entre as duas facções, porém, estava instalada a tensão. Cogitava-se que o motivo da recusa provinha de questões partidárias e, por Guilherme Lavor pertencer ao Exército Brasileiro.
    Durante aquela noite de carnaval do dia 4 de fevereiro de 1913, o belíssimo e amplo salão do clube estava lotado. Grande animação, quando, repentinamente, começou a saraivada de balas contra o clube, partindo da rua de trás, a Venâncio Aires, que, naquela época, sempre estava deserta durante a noite. O agressor foi o Tenente Lavor, embriagado, que reunira alguns soldados, armados de potentes fuzis Mauser, e inflamado pela rejeição, ordenou que estilhaçassem as janelas para acabar com a festa. O pânico se instaurou, começou o atropelamento, mulheres desmaiando, crianças berrando, pessoas sendo pisoteadas, outros correndo às cegas, e muitas senhoras e senhoritas pulando as altas sacadas e janelas, umas torcendo pés e tornozelos, outras  em condições de buscar abrigo nas casas vizinhas, temendo que o ataque evoluísse pela frente do clube. Dois delegados foram baleados; um se encontrava em estado grave e o outro perdera a vida.
    Sebastião Verissimo (pai de Erico Verisimo) berrou pelos quatro cantos, chamando os agressores de covardes, pois o recinto estava repleto de mulheres e homens desarmados. Não tardou para que um armeiro corresse para sua loja e trouxesse armas para revidar o ataque. Seguiu-se o tiroteio no melhor estilo "Bang-bang" em meio ao choro e desespero de distintas senhoras.
    O escritor Erico Verissimo e seu irmão Ênio - que eram apenas dois piazotes naquela época - estavam presentes no evento. Erico Verissimo narrou os fatos na primeira parte de sua biografia "Solo de Clarineta" (Págs. 96, 97, 98, 99 e 100). Segue trechos de seu relato:

"Vi um homem atirar-se duma das sacadas fronteiras do edifício, caindo sentado na calçada. Outros o imitaram. Meu coração começou a bater mais forte, ao ritmo do medo. Dona Afonsina (que prometeu vigiar Erico e Enio) segurando nossas mãos, rompeu a correr escadas abaixo, enquanto murmurava uma prece, e fomos buscar refúgio numa casa vizinha. Pernas frouxas, o coração na garganta, mas nem por isso menos curioso, aproximei-me duma janela e por uma fresta fiquei olhando a fachada do Comercial. Vi um homem com a mão ensanguentada, uma dama caminhando descabelada e manca pois tinha perdido, no entrevero, um de seus sapatos. Pessoas continuavam a saltar das escadas. O tiroteio durou mais alguns minutos. Ouvi uma voz dizer na penumbra daquela sala onde estávamos refugiados: "É o fim do mundo!" Pensei então nos meus pais "Que lhes teria acontecido?".
    De acordo com a foto abaixo, o círculo vermelho corresponde as possíveis casas onde Erico Verissimo buscou abrigo. O Clube Comercial está localizado no círculo amarelo.
  O pai de Erico Verissimo, sempre valente e aguerrido, saltou do prédio dizendo: "Corja de covardes e canalhas! Vocês só tem coragem de espingardear mulheres, velhos e homens desarmados!" Os poucos homens que permaneceram no clube arrastaram Sebastião Verissimo para dentro.

    No dia seguinte, correu a notícia de que todo o regimento de infantaria preparava-se para acatar novamente o clube, apossando-se pela força. Sebastião Verissimo reuniu todos os amigos valente para um "pega pra capar" e montou guarda na frente do prédio. O Tenente injuriado não voltou. Foi transferido, logo em seguida, para outra guarnição.
    A paz entre militares e civis só foi restabelecida tempos depois, devido aos esforços de Pacífico Dias da Fonseca.

    Para maiores detalhes, leiam os relatos nos seguintes livros: "A História de Cruz Alta" de Prudêncio Rocha, "Os Olhos do General" de Rossano Cavalari e "Solo de Clarineta", de Erico Verissimo.

3 comentários:

  1. Nada que justifique o comportamento absurdo do tenente, mas considerando a reação de alguns associados, deveria haver coisas mais sérias por de trás dessa votação. A história sempre tem dois lados, até mesmo "a oficial".

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  2. Verdade, Tariza! Toda história tem dois lados e outra: a história "oficial" sempre é contada através da visão dos vencedores. (pensei em centenas de exemplos, mas prefiro evitar confusão. Para bom entendedor meia palavra basta, né?)


    Quando comecei a pesquisar, ler livros sobre a Cruz Alta e tentar entender a mentalidade do gaúcho do século XIX, percebi que não era preciso grandes motivos para alguém "puxar o facão".
    Neste caso, por exemplo, havia a questão da honra, que era prezada acima de tudo. O prestígio social, pois a cidade era muito bem vista, tinha muitos barões e servia de modelo cultural ao Estado.
    O gaúcho do século XIX era muito aguerrido, impetuoso, invocado, não levava desaforo para casa e lutava até a morte, para defender algo que julgava certo.
    Bastava uma atitude "impensada" e acontecia atrocidades como esta.

    O que podemos especular, seriam os resquícios da inflamada divergência entre republicanos e federalistas. Como Cruz Alta era chamada de "Ninho dos Pica-Paus", ou seja, a terra dos republicanos,bastava um federalista meter o pé pra fora de casa, ou abrir a boca pra falar sobre política, que a bala comia em qualquer lugar. rsrsrs

    PS: A versão do Erico Verissimo é relativamente diferente da do Prudêncio Rocha, mas ambas são relativamente vagas quanto ao motivo.

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  3. Lembro de ter lido algo sobre uma ofensa pública de Sebastião Veríssimo ao Gen. Firmino, parece que era a cabeça dele mesmo que eles queriam. Será que pode proceder?

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