Este imponente prédio (que por um milagre ainda não foi demolido), conhecido como "Clube Comercial", é resultado de um projeto da nata cruz-altense no final do século XIX, pois a cidade, naquela época, não possuía clube de recreação. Para se associar ao clube, os candidatos passavam por uma bateria de avaliações parecidas com as da Maçonaria - pessoas escolhidas à dedo e votação com bolinhas pretas. Em dias festivos, estacionavam fronte ao prédio belíssimas carruagens e tílburis, e os menos privilegiados economicamente, paravam nas calçadas para observar aquela gente distinta, elegante e bem trajada que penetrava o clube.
Pois bem. Dizem os livros de história que, certa vez, no dia 4 de fevereiro de 1913, aconteceu um dos eventos mais infelizes (dos vários) que aconteceram em festividades na Rua do Comércio. Os fatos se desencadearam da seguinte maneira: No dia 16 de janeiro de 1913, a cúpula dos membros do clube se reuniu para votar a "iniciação" do Tenente Francisco Manoel da Silva - aprovado por unanimidade. No dia seguinte, entrou em votação o nome do Tenente Guilherme Lavor, que foi rejeitado pela maioria dos votos.
A causa da recusa não foi declarada.
Por esse motivo, a Diretoria se reuniu novamente, pois recebeu ofício de vários sócios que resolveram se retirar do clube, em forma de protesto. Outros se econeraram do clube logo depois. A Diretoria tentou, em várias reuniões seguintes, restabelecer um clima amigável entre as duas facções, porém, estava instalada a tensão. Cogitava-se que o motivo da recusa provinha de questões partidárias e, por Guilherme Lavor pertencer ao Exército Brasileiro.
Durante aquela noite de carnaval do dia 4 de fevereiro de 1913, o belíssimo e amplo salão do clube estava lotado. Grande animação, quando, repentinamente, começou a saraivada de balas contra o clube, partindo da rua de trás, a Venâncio Aires, que, naquela época, sempre estava deserta durante a noite. O agressor foi o Tenente Lavor, embriagado, que reunira alguns soldados, armados de potentes fuzis Mauser, e inflamado pela rejeição, ordenou que estilhaçassem as janelas para acabar com a festa. O pânico se instaurou, começou o atropelamento, mulheres desmaiando, crianças berrando, pessoas sendo pisoteadas, outros correndo às cegas, e muitas senhoras e senhoritas pulando as altas sacadas e janelas, umas torcendo pés e tornozelos, outras em condições de buscar abrigo nas casas vizinhas, temendo que o ataque evoluísse pela frente do clube. Dois delegados foram baleados; um se encontrava em estado grave e o outro perdera a vida.
Sebastião Verissimo (pai de Erico Verisimo) berrou pelos quatro cantos, chamando os agressores de covardes, pois o recinto estava repleto de mulheres e homens desarmados. Não tardou para que um armeiro corresse para sua loja e trouxesse armas para revidar o ataque. Seguiu-se o tiroteio no melhor estilo "Bang-bang" em meio ao choro e desespero de distintas senhoras.
O escritor Erico Verissimo e seu irmão Ênio - que eram apenas dois piazotes naquela época - estavam presentes no evento. Erico Verissimo narrou os fatos na primeira parte de sua biografia "Solo de Clarineta" (Págs. 96, 97, 98, 99 e 100). Segue trechos de seu relato:
"Vi um homem atirar-se duma das sacadas fronteiras do edifício, caindo sentado na calçada. Outros o imitaram. Meu coração começou a bater mais forte, ao ritmo do medo. Dona Afonsina (que prometeu vigiar Erico e Enio) segurando nossas mãos, rompeu a correr escadas abaixo, enquanto murmurava uma prece, e fomos buscar refúgio numa casa vizinha. Pernas frouxas, o coração na garganta, mas nem por isso menos curioso, aproximei-me duma janela e por uma fresta fiquei olhando a fachada do Comercial. Vi um homem com a mão ensanguentada, uma dama caminhando descabelada e manca pois tinha perdido, no entrevero, um de seus sapatos. Pessoas continuavam a saltar das escadas. O tiroteio durou mais alguns minutos. Ouvi uma voz dizer na penumbra daquela sala onde estávamos refugiados: "É o fim do mundo!" Pensei então nos meus pais "Que lhes teria acontecido?".
De acordo com a foto abaixo, o círculo vermelho corresponde as possíveis casas onde Erico Verissimo buscou abrigo. O Clube Comercial está localizado no círculo amarelo.
O pai de Erico Verissimo, sempre valente e aguerrido, saltou do prédio dizendo: "Corja de covardes e canalhas! Vocês só tem coragem de espingardear mulheres, velhos e homens desarmados!" Os poucos homens que permaneceram no clube arrastaram Sebastião Verissimo para dentro.
No dia seguinte, correu a notícia de que todo o regimento de infantaria preparava-se para acatar novamente o clube, apossando-se pela força. Sebastião Verissimo reuniu todos os amigos valente para um "pega pra capar" e montou guarda na frente do prédio. O Tenente injuriado não voltou. Foi transferido, logo em seguida, para outra guarnição.
A paz entre militares e civis só foi restabelecida tempos depois, devido aos esforços de Pacífico Dias da Fonseca.
Para maiores detalhes, leiam os relatos nos seguintes livros: "A História de Cruz Alta" de Prudêncio Rocha, "Os Olhos do General" de Rossano Cavalari e "Solo de Clarineta", de Erico Verissimo.
Nada que justifique o comportamento absurdo do tenente, mas considerando a reação de alguns associados, deveria haver coisas mais sérias por de trás dessa votação. A história sempre tem dois lados, até mesmo "a oficial".
ResponderExcluirVerdade, Tariza! Toda história tem dois lados e outra: a história "oficial" sempre é contada através da visão dos vencedores. (pensei em centenas de exemplos, mas prefiro evitar confusão. Para bom entendedor meia palavra basta, né?)
ResponderExcluirQuando comecei a pesquisar, ler livros sobre a Cruz Alta e tentar entender a mentalidade do gaúcho do século XIX, percebi que não era preciso grandes motivos para alguém "puxar o facão".
Neste caso, por exemplo, havia a questão da honra, que era prezada acima de tudo. O prestígio social, pois a cidade era muito bem vista, tinha muitos barões e servia de modelo cultural ao Estado.
O gaúcho do século XIX era muito aguerrido, impetuoso, invocado, não levava desaforo para casa e lutava até a morte, para defender algo que julgava certo.
Bastava uma atitude "impensada" e acontecia atrocidades como esta.
O que podemos especular, seriam os resquícios da inflamada divergência entre republicanos e federalistas. Como Cruz Alta era chamada de "Ninho dos Pica-Paus", ou seja, a terra dos republicanos,bastava um federalista meter o pé pra fora de casa, ou abrir a boca pra falar sobre política, que a bala comia em qualquer lugar. rsrsrs
PS: A versão do Erico Verissimo é relativamente diferente da do Prudêncio Rocha, mas ambas são relativamente vagas quanto ao motivo.
Lembro de ter lido algo sobre uma ofensa pública de Sebastião Veríssimo ao Gen. Firmino, parece que era a cabeça dele mesmo que eles queriam. Será que pode proceder?
ResponderExcluir