quarta-feira, 25 de maio de 2011

O triste fim de João Mandioca

    No início do Século XX, havia um gurizinho matuto que vivia nas cercanias Oeste da cidade que, de quando em vez, deixava seu rancho montado em um burro, trazendo mandiocas e outros produtos cultivados em sua horta, para vender aos comerciantes da cidade. O moleque trocava os alimentos por dinheiro, comprava alguns mantimentos e retornava para o seu casebre, silenciosamente.
   O tempo passou, o menino virou homem, ou melhor, uma alma tristonha e solitária que, todas as semanas, ainda cumpria o rito de vir para a cidade vender mandioca para os comerciantes. Com o decorrer do tempo, acabou recebendo a alcunha depreciativa de “João Mandioca”. E, por algum motivo que ignoramos, João Mandioca decepcionou-se com aquela vida monótona do campo, cansou-se de plantar no sol árduo, para depois trocar o seu suor por algumas merrecas, e então abandonou seu ofício de plantador, abandonou até mesmo sua velha tapera, para viver na zona urbana, onde zanzava pelas ruas durante o dia e dormia em casas abandonadas durante a noite.
   João Mandioca passou, então, a viver na mais profunda e absoluta miséria, tornando-se – assim como aconteceu com centenas de outros indigentes – um tipo muito popular das ruas de Cruz Alta. Não havia ninguém que não conhecesse e não simpatizasse com aquele senhor sorridente, de meia estatura, que usava um bigode hirsuto, cabelos cobertos por um chapéu surrado, terno e gravatas encardidos e uma bengala improvisada (para complementar seu figurino aristocrático).
    Nos elegantíssimos cafés da burguesia cruz-altense dos anos 20 e 30, os fregueses sempre pagavam um trago para “fazer um agrado” ao João Mandioca, visto que, quando encachaçado, o dito ficava ainda mais hilário. “Já se tramemo no ferro” é o que Mandioca berrava com o peito estufado e puxando sua faca (pois, naquela época, qualquer um podia andar armado) toda vez que a gurizada o provocava. Bastava João Mandioca cruzar a rua cambaleando de trago para algum provocador entoar: “Ô Barão do Cemitério!” E lá ia o “Oca” (como a piazada o chamava) puxando a faca da cintura e correndo, inutilmente, atrás dos moleques.
   Nessa vida precária de isolamento e solidão, João Mandioca viveu afogado na ignorância, sem trato, sem cultura, sem instrução... Abandonado por Deus. Deveria ter a alma de uma criança, pois todos os seus desejos insatisfeitos afloravam quando o álcool surtia efeito. Dizia-se galanteador, amante de mulheres formosas, e se auto-intitulava “herói de guerra”.
    Certa feita, em um gesto de total desrespeito, deram-no uma medalha, onde lia-se: “João Francisco da Silva Aipim, Herói da Guerra do Paraguai”. O pobre molambo, em sua sinistra estupidez, mal sabia que “Aipim” era a mesma coisa que “Mandioca”. E lá ia ele faceiro pelas ruas, exibindo sua honraria forjada, servindo de motivo de pilhérias e galhofas por parte de todos os que deveriam ampará-lo como a um semelhante.
 
    E quando a noite fria e gélida rompia e as casas comerciais fechavam as portas, cada um tomava o rumo de casa, mas o inebriado João Mandioca ficava, quando não atirado pelos cantos, confundido com a paisagem, senão abraçado em uma garrafa de cana, possivelmente, vivendo, dentro de seus sonhos e ensejos, as batalhas épicas que nunca viveu, ou, talvez, conquistando as belas mulheres que nunca lhe corresponderam. 
    Em uma noite fria de agosto do ano de 1940, João Mandioca aprontou um fogo de chão para se aquecer, no porão de alguma casa abandonada, e esta foi a última vez que alguém o viu. O coitado foi encontrado reduzido a cinzas. Decerto, bebeu demais, derrubou álcool nas próprias roupas e, por algum descuido, incendiou-se a si mesmo. Este foi o triste fim de uma vida miserável. 
    
   No dia seguinte, uma carroça da prefeitura recolheu o que sobrou de João Mandioca, enterrando-o na área de indigentes. Ninguém lhe prestou homenagens. Ninguém lhe comprou flores para o cortejo. Ninguém soou um acorde da clarineta. Ninguém, ao menos, derramou-lhe uma lágrima como tributo póstumo.

4 comentários:

  1. Henrique linda esta tua postagem
    e muito bem escrita e reveladora,
    das mazelas do nosso chamado
    mundo social que de social
    não tem nada!
    Um verdade onde tantos tem
    vivido esta triste realidade.
    Abraço gurizinho de mãos e cabeça abençoadas!

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  2. Pois é, Alcena...

    Quando Greice e eu pensávamos na próxima pauta, lembramos que já escrevemos muito sobre as grandes personalidades que aqui nasceram, contudo, nunca há espaço nos anais da história para aquelas pessoas comuns como João Mandioca, que teve uma vida miserável, mas, de um modo ou outro, também contribuiu e fez parte de nossa história.
    Esta é a nossa forma de homenagear ele, e muitos outros desafortunados que por aqui viveram.

    Um abraço, guriazinha!!!

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  3. Fala pra Greice que ela esta de parabéns,
    e uma guriazinha muito abençoada!

    ps: obrigada pelo guriazinha! ihihiii!!!

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  4. Ela é um pouco tímida, mas conseguiu dizer: obrigada, Alcena! rsrsrsrs

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