segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A segunda vez que Erico Verissimo escapou da "morte matada"

   A última profissão que Erico Verissimo exerceu em Cruz Alta era a de farmacêutico. Todavia, a Farmácia Central sempre foi de mal a pior devido a dois fatores: Erico era um péssimo administrador e odiava quando clientes entravam no estabelecimento, pois, atrapalhavam-lhe o raciocínio ao ler ou escrever. E foi, justamente, a Farmácia Central, o cenário da segunda vez que Erico escapou da morte matada.
Farmácia Central, na Rua Pinheiro Machado

   Um dia, estava Erico no escritório - e ao invés de cuidar dos negócios - estava a traduzir um poema de Omar Khayyam, quando um de seus empregados bateu a porta, dizendo: "Olhe, patrão, está lá na frente um homem que quer levar um vidro de xarope. Eu disse que só a dinheiro. Ele ficou brabo e quer falar com o senhor". Era um boleeiro de aluguel (que hoje nós chamamos de taxista - só que falamos de taxi de carroças e carruagens), mas um daqueles gaúchos que vestem bombacha, lenço, botas e tudo o mais. Ele estava um tanto embriagado e falava de maneira grossa e estúpida que queria levar o xarope e pagar mais tarde. Como a farmácia ia de mal a pior, justamente pela fama de vender tudo fiado, Erico manteve-se firme. Segurou o vidro de Angico Pelotense e disse: "Não Leva!".
   O gaúcho bagual enfureceu-se. Tirou o revólver da cintura e apontou para o peito do futuro escritor.
   Erico ficou estático. O vidro custava apenas dois mil réis, entretanto, havia uma simbologia por trás de sua postura: em uma cidade como Cruz Alta vigorava um código implícito de que um homem jamais deveria recusar briga.
   Erico percebeu que algumas pessoas que passavam pela rua pararam para assistir a cena. Que situação! Ele era um jovem de vinte e poucos anos, sensato e inteligente. Sabia que sua vida valia muito mais do que um vidro de remédio e que a situação era, no mínimo, estúpida. Mas sabia também que não podia fazer papel feio. Sua família tinha fama de gerar homens valentes, e ele era filho, de ninguém menos do que o destemido Sebastião verissimo!
   "Não leva!" Erico manteve sua postura, embora a garganta já estivesse seca e as perninhas de gafanhoto tremendo.
   O que aconteceu depois, nem mesmo ele conseguiu entender. Quando percebeu, estava a frente do balcão, dando alguns passos adiante, enquanto o boleeiro estava dando alguns passos para trás. As pessoas se amontoavam na calçada e não ousavam interferir. Foi quando, de esguelha, Erico percebeu que seu sócio surgia, armado de uma tranca de ferro. O boleeiro já tinha descido a calçada e o filho do Sebastião estava na soleira, segurando o xarope como se ele fosse uma arma. Olhava firmemente para o cano do revólver enferrujado que lhe era apontado.
   Para surpresa geral, o gaudério guardou o revólver e meteu-se na carroça. Quando pegou o chicote, Erico temeu levar uma chicotada na cara, mas o homem apenas atiçou o cavalo e saiu rua acima.
   Erico Verissimo fez uma pose de macho para a multidão que o assistia e retornou para seu posto, satisfeito de si. No entanto, estava tão abalado em sua farsa que alguém tocou-lhe no ombro e, assustado, deixou cair o xarope.

   Que ironia! Quase perdeu a vida por causa de um remédio, e após arriscar sua vida pelo frasco, ainda acaba derrubando-o no chão. Perdeu dois mil réis mas mantivera sua honra intacta!!!
Este é o prédio da farmácia hoje, que deveria ser considerado histórico e protegido pela lei, contudo, está todo descaracterizado por essas cores desarmoniosas, as portas todas derrubadas para dar lugar a vitrines de vidros e essas placas ridículas na balaustrada. Que pena!

Um comentário:

  1. Olá, obrigada pela postagem! Érico Veríssimo é meu escritor preferido desde o começo da adolescência e pretendo ir á Cruz Alta e Porto Alegre para conhecer "seus lugares". Poderia me dizer onde fica essa antiga farmácia? Pretendo conhecer, além da casa, a farmácia, o banco do comércio e se souber de mais algum local significativo na vida do escritor e puder me indicar, agradecerei muito! Obrigada pela postagem! Liliana.

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